As verdades
de fé no Antigo Testamento davam uma longa lista, das que preenchem
tratados e dicionários de teologia bíblica. Aqui focaremos apenas alguns
núcleos.
A ideia de fé podia levar-nos a
considerar o pensamento bíblico radicalmente diferente do dos outros
povos, por implicar verdades reveladas. Diferenças existem, sem dúvida.
Porém, entre todas as culturas contemporâneas da Bíblia, encontramos
convicções essenciais partilhadas, nas quais assentam o sentido, a
lógica e as expetativas principais para o mundo e a vida.
Mesmo em períodos mais fechados, a
Bíblia sempre manteve certezas profundas em estado de partilha. A isto
chamamos o mundo original da Bíblia. E as verdades aqui assumidas brotam
de várias fontes. Indicaremos quatro.
1. Dos conceitos essenciais
Cada uma das principais culturas intuiu e
elaborou em conceitos fundamentais as co-ordenadas com que define o
sentido do universo. Os termos são diferentes, mas a função é universal e
análoga.
Para os egípcios, o conceito de ma´at
exprimia, numa só palavra, todos os conceitos e valores essenciais.
Para o traduzir, costumam usar-se vários termos como verdade, bem,
ordem, harmonia, beleza. Tudo o que é essencial cabe numa só palavra.
Os sumérios serviam-se do termo me,
para com ele representar uma longa lista de realidades de grande
significado, desde conceitos como a realeza até instrumentos como a
enxada.
Na Mesopotâmia semita, o essencial exprime-se por ideias e valores representados pelos termos mesharum (retidão, direito), shimtum (destino, função, vocação) e nemêqum (profundidade, sabedoria, mistério). Com eles se faz o principal da sua teologia.
No mundo semítico ocidental,
onde a Bíblia se enquadra mais diretamente, esta intuição de uma ordem,
que significa justeza, funcionalidade, eficácia e satisfação,
pressente-se por todo o lado e exprime-se com o conceito de justiça, sedeq.
Mesmo que nos pareça surpreendente, é este conceito que garante sentido
e estabilidade ao mundo e à vida, implicando nessa justiça a verdade, o
bem e a beleza como seus satélites e sinónimos. Todo o cumprimento da
aliança se resume em ser justo (Dt 6,20-25).
No fundo, não andamos longe do que
acontece entre os contemporâneos e particularmente no Egipto. Os pontos
de discordância e confronto histórico entre os hebreus e o Egito não
impedem que aconteça esta surpreendente sintonia no essencial.
É sobre este conceito de justiça que
assenta, na Bíblia, toda a ordem do mundo e toda a dinâmica, qualidade e
generosidade que cabem nos comportamentos humanos. Quando São Paulo
define, numa fórmula teológica, o padrão mais elevado de crescimento
espiritual e religioso do humano, chama-lhe justiça e justificação (Rm
3,21-31; Gl 2,15--21). É o ponto culminante na sua teologia.
Este conceito situou-se no âmago da
teologia de forma tão essencial, que chegou a ser pomo de discórdia de
algumas dissidências hermenêuticas entre cristãos. Por mais inovador que
possa ser, Paulo está, neste ponto, a realizar a melhor hermenêutica
sobre as convicções e verdades essenciais de fé de todo o mundo
espiritual de que nasce a Bíblia.
A sua teologia da justificação tem, por conseguinte, raízes profundas através e para além da própria Bíblia.
2. Das narrativas estruturais
Foi em grandes narrativas míticas que
aquelas culturas recolheram as coordenadas com que organizam a sua
imagem do mundo e da vida. Os mitos são a sua literatura maior, a parte
marcante do seu cânone. E alguns temas destes mitos estão intensamente
presentes na Bíblia, desde o Génesis (Gn 1-11) ao Apocalipse.
Dessas narrativas matriciais emerge a ideia de que as divindades são a
referência primordial e o modelo em que se define a função e o sentido
da presença dos humanos no mundo. É assim que estes são imagem de Deus
(Gn 1,26-28).
Esta fé no sentido da criação representa
a confiança, a satisfação e a expetativa de eficácia para as tarefas a
desempenhar, quando são felizes e também quando são pesadas e sofridas.
Viver é bom (Gn 1,4.10.12.18.21. 25.31), apesar de tudo.
Na maneira de pensar e definir a Deus
sente-se um sadio equilíbrio entre uma imagem de Deus identificado com
dimensões essenciais do ser e da vida e uma consideração mais
transcendente do mesmo como pessoa. Na primeira, Deus é objeto principal
de contemplação sobre o sentido de tudo; na segunda, Ele é a pessoa com
quem a consciência se corresponde em relação de diálogo e
transcendência.
Temos assim expressa a dimensão objetiva
e a dimensão subjetiva e dialogal da consciência humana. Por um lado é
teologia; por outro é oração. Mesmo com esta dimensão de transcendência
estruturante da consciência humana, o divino continua a ser entendido
como dimensão integrada na grande unidade de sentido, ordem e eficácia
que é o universo.
Há uma lógica envolvente em que se
inclui o próprio Deus. É frequente Deus aparecer em cumplicidade com
ideias englobantes que naturalmente seriam vistas como seus mensageiros e
mediadores. Um dos casos mais notórios é a sabedoria
(Pr 8,22-36); com ela se podem recontar as maravilhas da história da
salvação, atribuindo-lhe o papel de Deus (Sb 10-19). Foi imensa a
ressonância da sabedoria na evolução do pensamento bíblico e cristão,
contrariamente ao que tinha na mitologia grega.
3. Da História
As verdades universais referidas, apresentam-se pela Bíblia fora sob a forma de postulados mais profundos do que um simples credo. Podemos dizer que representam a fé maior. Entretanto, o que se costuma rotular como credo
específico da tradição hebraica é uma série de verdades que poderiam
muito bem andar perdidas por entre a profusão incomensurável de
acontecimentos da história passada.
É com essas memórias privilegiadas que
Israel formula algumas convicções de fé que lhe dão identidade e traçam o
seu itinerário de fé. É o caso do pequeno credo histórico, que começa com «Meu pai era um arameu errante; desceu ao Egito com um pequeno número…» (Dt 26,5-10). É a experiência da história como espelho das verdades de fé.
Este tema é recorrente por toda a Bíblia (Ne 9,6-37; At 3,12-26) e tem um dos últimos e mais brilhantes exemplos no discurso judaico-cristão de Estêvão (At
7,1-53). O passado evocado por ele é minuciosamente ex-posto e vai até
ao reinado de David. Na memória da libertação assenta uma visão feliz da
história como salvação e de um futuro bafejado pelas
esperanças de ordem e justiça que as mitologias fundamentais assentavam
como postulado. As ações de salvação do passado antecipavam garantias
para um futuro igualmente salvador.
O horizonte final da História é uma revelação de luz (Ap 22,5), tal como foi no princípio (Gn 1,3). E se o credo histórico parecia amiúde estreitar-se em nacionalismo, ele reaparece de novo em chave humana e universal.
4. Do humano
Aqui encontramos outra matriz universal de verdades profundas. O humano é marcadamente universal, não só porque é parecido, mas porque é essencialmente social e comunitário. A fórmula do humano é família e comunidade solidária, prolongada em memória e em história, miticamente planetária. O conceito de salvação e realização humanas incide principalmente neste destino e sentido instaurado em plena comunhão.
Mas é pela dimensão pessoal da
consciência humana que se abre a porta de acesso à conceção pessoal de
Deus. E esta pode ser uma das marcas específicas da verdade bíblica. O
texto de Gn 1,26 não parecia definir a imagem de Deus aplicada ao ser
humano por este matiz de relação interpessoal. São as tarefas que ali
atribuem a correspondência de imagem.
Neste ponto íntimo e sensível de
identidade para cada humano é que se desenha a porta e se oferece a
chave, abrindo acesso à contemplação de Deus como Tu absoluto e fechando
a linha do horizonte com o encontro entre o caminho e a meta procurada.
Esse ponto de transcendência está referenciado no mais íntimo de si mesmo, conforme já matizava Santo Agostinho, bom hermeneuta e exegeta bíblico.
O salmo 8
traduz bem este campo de intensas verdades do humano, situadas entre a
exaltante cumplicidade cósmica, seu enquadramento e tarefa, e o núcleo
denso da consciência individual. Íntimo reduto, onde todo o caminho se
começa e todo o caminhar se consuma.
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