segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Verdades de fé

Escrito por José Augusto Ramos Domingo, 14 Outubro 2012 22:07
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As verdades de fé no Antigo Testamento davam uma longa lista, das que preenchem tratados e dicionários de teologia bíblica. Aqui focaremos apenas alguns núcleos.
A ideia de fé podia levar-nos a considerar o pensamento bíblico radicalmente diferente do dos outros povos, por implicar verdades reveladas. Diferenças existem, sem dúvida. Porém, entre todas as culturas contemporâneas da Bíblia, encontramos convicções essenciais partilhadas, nas quais assentam o sentido, a lógica e as expetativas principais para o mundo e a vida.
Mesmo em períodos mais fechados, a Bíblia sempre manteve certezas profundas em estado de partilha. A isto chamamos o mundo original da Bíblia. E as verdades aqui assumidas brotam de várias fontes. Indicaremos quatro.

1. Dos conceitos essenciais

Cada uma das principais culturas intuiu e elaborou em conceitos fundamentais as co-ordenadas com que define o sentido do universo. Os termos são diferentes, mas a função é universal e análoga.
Para os egípcios, o conceito de ma´at exprimia, numa só palavra, todos os conceitos e valores essenciais. Para o traduzir, costumam usar-se vários termos como verdade, bem, ordem, harmonia, beleza. Tudo o que é essencial cabe numa só palavra.
Os sumérios serviam-se do termo me, para com ele representar uma longa lista de realidades de grande significado, desde conceitos como a realeza até instrumentos como a enxada.
Na Mesopotâmia semita, o essencial exprime-se por ideias e valores representados pelos termos mesharum (retidão, direito), shimtum (destino, função, vocação) e nemêqum (profundidade, sabedoria, mistério). Com eles se faz o principal da sua teologia.
No mundo semítico ocidental, onde a Bíblia se enquadra mais diretamente, esta intuição de uma ordem, que significa justeza, funcionalidade, eficácia e satisfação, pressente-se por todo o lado e exprime-se com o conceito de justiça, sedeq. Mesmo que nos pareça surpreendente, é este conceito que garante sentido e estabilidade ao mundo e à vida, implicando nessa justiça a verdade, o bem e a beleza como seus satélites e sinónimos. Todo o cumprimento da aliança se resume em ser justo (Dt 6,20-25).
No fundo, não andamos longe do que acontece entre os contemporâneos e particularmente no Egipto. Os pontos de discordância e confronto histórico entre os hebreus e o Egito não impedem que aconteça esta surpreendente sintonia no essencial.
É sobre este conceito de justiça que assenta, na Bíblia, toda a ordem do mundo e toda a dinâmica, qualidade e generosidade que cabem nos comportamentos humanos. Quando São Paulo define, numa fórmula teológica, o padrão mais elevado de crescimento espiritual e religioso do humano, chama-lhe justiça e justificação (Rm 3,21-31; Gl 2,15--21). É o ponto culminante na sua teologia.
Este conceito situou-se no âmago da teologia de forma tão essencial, que chegou a ser pomo de discórdia de algumas dissidências hermenêuticas entre cristãos. Por mais inovador que possa ser, Paulo está, neste ponto, a realizar a melhor hermenêutica sobre as convicções e verdades essenciais de fé de todo o mundo espiritual de que nasce a Bíblia.
A sua teologia da justificação tem, por conseguinte, raízes profundas através e para além da própria Bíblia.

2. Das narrativas estruturais

Foi em grandes narrativas míticas que aquelas culturas recolheram as coordenadas com que organizam a sua imagem do mundo e da vida. Os mitos são a sua literatura maior, a parte marcante do seu cânone. E alguns temas destes mitos estão intensamente presentes na Bíblia, desde o Génesis (Gn 1-11) ao Apocalipse. Dessas narrativas matriciais emerge a ideia de que as divindades são a referência primordial e o modelo em que se define a função e o sentido da presença dos humanos no mundo. É assim que estes são imagem de Deus (Gn 1,26-28).
Esta fé no sentido da criação representa a confiança, a satisfação e a expetativa de eficácia para as tarefas a desempenhar, quando são felizes e também quando são pesadas e sofridas. Viver é bom (Gn 1,4.10.12.18.21. 25.31), apesar de tudo.
Na maneira de pensar e definir a Deus sente-se um sadio equilíbrio entre uma imagem de Deus identificado com dimensões essenciais do ser e da vida e uma consideração mais transcendente do mesmo como pessoa. Na primeira, Deus é objeto principal de contemplação sobre o sentido de tudo; na segunda, Ele é a pessoa com quem a consciência se corresponde em relação de diálogo e transcendência.
Temos assim expressa a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva e dialogal da consciência humana. Por um lado é teologia; por outro é oração. Mesmo com esta dimensão de transcendência estruturante da consciência humana, o divino continua a ser entendido como dimensão integrada na grande unidade de sentido, ordem e eficácia que é o universo.
Há uma lógica envolvente em que se inclui o próprio Deus. É frequente Deus aparecer em cumplicidade com ideias englobantes que naturalmente seriam vistas como seus mensageiros e mediadores. Um dos casos mais notórios é a sabedoria (Pr 8,22-36); com ela se podem recontar as maravilhas da história da salvação, atribuindo-lhe o papel de Deus (Sb 10-19). Foi imensa a ressonância da sabedoria na evolução do pensamento bíblico e cristão, contrariamente ao que tinha na mitologia grega.

3. Da História

As verdades universais referidas, apresentam-se pela Bíblia fora sob a forma de postulados mais profundos do que um simples credo. Podemos dizer que representam a fé maior. Entretanto, o que se costuma rotular como credo específico da tradição hebraica é uma série de verdades que poderiam muito bem andar perdidas por entre a profusão incomensurável de acontecimentos da história passada.
É com essas memórias privilegiadas que Israel formula algumas convicções de fé que lhe dão identidade e traçam o seu itinerário de fé. É o caso do pequeno credo histórico, que começa com «Meu pai era um arameu errante; desceu ao Egito com um pequeno número…» (Dt 26,5-10). É a experiência da história como espelho das verdades de fé.
Este tema é recorrente por toda a Bíblia (Ne 9,6-37; At 3,12-26) e tem um dos últimos e mais brilhantes exemplos no discurso judaico-cristão de Estêvão (At 7,1-53). O passado evocado por ele é minuciosamente ex-posto e vai até ao reinado de David. Na memória da libertação assenta uma visão feliz da história como salvação e de um futuro bafejado pelas esperanças de ordem e justiça que as mitologias fundamentais assentavam como postulado. As ações de salvação do passado antecipavam garantias para um futuro igualmente salvador.
O horizonte final da História é uma revelação de luz (Ap 22,5), tal como foi no princípio (Gn 1,3). E se o credo histórico parecia amiúde estreitar-se em nacionalismo, ele reaparece de novo em chave humana e universal. 

4. Do humano

Aqui encontramos outra matriz universal de verdades profundas. O humano é marcadamente universal, não só porque é parecido, mas porque é essencialmente social e comunitário. A fórmula do humano é família e comunidade solidária, prolongada em memória e em história, miticamente planetária. O conceito de salvação e realização humanas incide principalmente neste destino e sentido instaurado em plena comunhão.
Mas é pela dimensão pessoal da consciência humana que se abre a porta de acesso à conceção pessoal de Deus. E esta pode ser uma das marcas específicas da verdade bíblica. O texto de Gn 1,26 não parecia definir a imagem de Deus aplicada ao ser humano por este matiz de relação interpessoal. São as tarefas que ali atribuem a correspondência de imagem.
Neste ponto íntimo e sensível de identidade para cada humano é que se desenha a porta e se oferece a chave, abrindo acesso à contemplação de Deus como Tu absoluto e fechando a linha do horizonte com o encontro entre o caminho e a meta procurada.
Esse ponto de transcendência está referenciado no mais íntimo de si mesmo, conforme já matizava Santo Agostinho, bom hermeneuta e exegeta bíblico.
O salmo 8 traduz bem este campo de intensas verdades do humano, situadas entre a exaltante cumplicidade cósmica, seu enquadramento e tarefa, e o núcleo denso da consciência individual. Íntimo reduto, onde todo o caminho se começa e todo o caminhar se consuma.

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